domingo, janeiro 08, 2012

O jogo de emoções dos Novos Titãs


Capa de Games (2011)

Eu leio gibis há mais tempo do que seria saudável. Aliás, se eu leio, é porque leio gibis. Foi por meio deles e por causa deles que aprendi a ler, lá bem atrás, quando tinha apenas três anos. A fascinação que os heróis brilhantes do papel me causavam (e ainda causam) era tamanha que me impelia ferozmente àqueles caderninhos de papel...

Desde aquele começo tenho um personagem favorito, que continua sendo meu favorito até hoje (a ponto de eu trazê-lo marcado no meu corpo), que é o Superman. Mas no meu coração sempre houve e continua havendo um local todo especial para os Novos Titãs.

Aquele grupo de heróis jovens, liderados por um Robin crescido, que havia aprendido tudo com o Batman e ido além... Havia algo de muito especial neles. Os Titãs eram diferentes de qualquer outro agrupamento de heróis. A Liga da Justiça era como um organizado time de funcionários numa empresa. Adultos que tinham uma tarefa a cumprir e a cumpriam muito bem. Os Vingadores, na sempre evoluída Marvel, tinham um certo lance familiar, afinal de contas o Visão (um robô!) era casado com a Feiticeira Escarlate. Mas ainda assim eles eram adultos, comandados fortemente por um soldado ideal, o Capitão América.

Mas os Titãs... ah, os Titãs. Eles eram como os Goonies ou os garotos de Conta Comigo. Eram jovens quase reais. Se o Superman representava o modo correto de fazer as coisas, um pai que ensina pelo exemplo e sempre acerta, os Titãs erravam, se perdiam, se divertiam.  Eram os amigos que todo garoto queria ter. E, melhor de tudo: que todos os leitores efetivamente tinham.


Cena de Games (2011), com Asa Noturna em
primeiro plano
Nas histórias extraordinariamente ilustradas por George Pérez e escritas com rara inspiração por Marv Wolfman era possível sentir as dores do crescimento de um Robin que não queria mais seguir o que seu “pai” morcego dizia. De um Kid Flash disposto a por de lado a vida de herói, seu sonho de criança, para entrar na faculdade e tentar ser normal. Depois, um promissor atleta que perde partes do corpo num acidente e se torna algo diferente, um Cyborg pleno. Além de um menino órfão de pele verde, uma princesa ex-escrava espacial e uma feiticeira filha de um demônio.

Metáforas, metáforas e mais metáforas. Eram as vidas dos leitores que estavam ali, transfiguradas pela fantasia, que de forma alguma minimizava aqueles sentimentos. Era, por outro lado, algo que apenas servia para ressaltar a verossimilhança, tornando a conexão com os leitores ainda mais forte.

As histórias daquela época dos Titãs, nos anos 1980, eram muito envolventes, diferentes de tudo que havia na DC (e até na Marvel, apesar dos X-Men de Claremont e Byrne) da época. Ainda me lembro muito bem do medo que senti do vampiro Irmão Sangue e seus acólitos; da traição doída que Logan, conhecido como Mutano, sofreu da menina chamada Terra, que enganou os Titãs e os entregou ao pior inimigo deles, o Exterminador, no Contrato de Judas. Ou do terror da possessão demoníaca de Trigon, o pai de Ravena.

Havia todo o esquema heróico, mas também vários outros elementos, que enriqueciam ainda mais a narrativa. Havia uma tensão sexual no ar. Wally West, o Kid Flash, era apaixonado pela problemática Ravena. Robin (que logo se tornou Asa Noturna) era namorado de Estelar e não passavam duas edições em que não houvesse pelo menos um quadrinho dos dois saindo da cama juntos. Mas sem forçar nada. Era algo simples, natural como a vida aqui fora.

Mas, além disso, as relações entre os membros do grupo eram muito bem elaboradas. Mesmo sendo um líder nato, um futuro Batman, Dick Grayson era sempre questionado, especialmente por Donna Troy, a Moça-Maravilha, com toda sua sabedoria clássica.

Os Novos Titãs marcaram época e deixaram saudade.  Aquela fase maravilhosa foi se perdendo ao longo da terrível (para os quadrinhos de super-heróis) década de 1990. Somente nos anos 2000, quando um leitor daquelas histórias se tornou ele próprio escritor, Geoff Johns, que uma poeira daquele tempo se espalhou levemente, com os mesmos Cyborg, Estelar e Ravena  acompanhados agora de novos Robin, Moça-Maravilha e Kid Flash, além de Superboy. Mas não era a mesma coisa. O mundo mudou, em vários sentidos ficou mais chato e careta, e sexo e possessão demoníaca não aparecem mais tão livremente num gibi como antes. A “pegada” se perdeu.

Games
Porém, uma boa surpresa surgiu em 2011. Uma história perdida, uma última aventura dos Titãs de Wolfman e Pérez: a lendária graphic novel “Games”.

Desde mais ou menos 1988 que os fãs ouviam falar de “Games”. Vez ou outra a saudosa revista especializada “Wizard” trazia alguma arte. Depois, a internet foi povoada de teorias conspiratórias sobre os motivos que impediam a publicação da revista. Diziam as lendas que “Games” era muito pesada, sombria, mexia demais com os personagens e causaria polêmica caso fosse publicada.

Mas a verdade era mais simples. Agora que foi publicada, Marv Wolfman conta na introdução que sofreu um bloqueio criativo logo no meio do processo, que foi retomado anos mais tarde, mas aí decisões editoriais acabaram travando o andamento, que somente em 2011 foi retomado. E ao ver a obra pronta só é possível dizer que valeu a pena esperar.

Ravena e Cyborg conversam em Games (2011)

Games” foi desenhada por Pérez em painéis maiores, o que deixou a arte detalhada dele ainda mais precisa e bela. Para esta edição, o desenhista e Wolfman repensaram as cenas, atualizaram os conceitos e, livres das travas da continuidade, puderam avançar e criar uma narrativa densa, de forte carga emocional.

Na história, um vilão novo e desconhecido ameaça a cidade de Nova Iorque, e também os entes queridos dos Titãs, obrigando-os a participar de um jogo perigoso e mortal, em que estão na mesa incontáveis vidas.
Diferente do que habitualmente vemos em histórias de super-heróis, as consequências em “Games” são graves, intensas. Há mortes e outras perdas para os personagens, que se vêem colocados em situações nunca vistas antes.

Não há como saber se a publicação original, lá em 1988, teria o mesmo impacto, visto que havia sido pensada para se encaixar na continuidade da revista mensal. O que se vê na publicação atual é algo que muda o status quo do grupo de jovens heróis de maneira decisiva.

Games” é o canto do cisne da inspirada dupla Wolfman e Pérez nos Titãs. É uma homenagem perfeita ao trabalho dos dois e um presente aos fãs, que por tanto tempo acompanharam as aventuras daquela turma de garotos vivendo suas vidas de maneira tão parecida com as nossas, ao mesmo tempo em que salvam o mundo de terríveis ameaças.

Ler “Games” é como encontrar um álbum de fotografias perdido de alguma viagem da época de colégio, relembrando o que passou e ao mesmo tempo conhecendo algo novo. Uma obra de qualidade inquestionável e que ganhou um acabamento digno, com cores especiais e capa dura, além de extras como a proposta inicial da história para os editores.

Ali temos um dos aspectos mais sensíveis da magia das HQs atuando plenamente: o tempo congelado, que mesmo 20 anos depois, conserva os personagens naquele estado clássico e que consegue, com isso, despertando a memória dos leitores, transportando-os pelo tempo no folhear das páginas e resgatando sentimentos de outrora.

Mas acima de toda a carga sentimental, “Games” é um senhor trabalho em forma de quadrinhos. Uma lição para os criadores de hoje: estrutura narrativa, construção de personagens, arte espetacular, tudo. Completados pela cereja do bolo, a lembrança de tempos em que tudo que um garoto leitor de gibis precisava era de amigos como ele. Como aqueles Novos Titãs.